Wandinha é uma série Menor

 

A Wandinha (sim, esse é o nome dela) tem uma história incrível, não só pela aventura que ela conta, mas por tudo que é representado em sua história, uma inspiração que vem transformar o sentido da história original, dos quadrinhos e filmes, em uma nova dinâmica, muito mais voltada para a juventude. 

A história acompanha a heroína ora de seu tradicional núcleo familiar, os demais Addams ficaram em casa nessa aventura com algumas participações especiais aqui e ali. Se trata de um exercício de criatividade que, embora comum na imaginação de leitores e autores, na filosofia de Deleuze foi chamada de “minoração”, a tentativa de imaginar quais rumos a história tomaria se, por exemplo, Romeu morresse ainda no primeiro ato de Romeo e Julieta. Foi exatamente isso que fez o dramaturgo Carmelo Bene em sua versão da história. Esse é o primeiro passo que torna a história da série em uma narrativa menor. 

“Menor” aqui não é pejorativo, na verdade é inclusive positivo, pois aquilo que os filósofos Guattari e Deleuze e o dramaturgo Carmelo Bene definiram como uma literatura menor é uma história que consegue narrar algo que uma literatura maior (ou geral) não conseguiria, algo que é feito de forma maravilhosa em Wandinha. Para os supracitados, uma literatura menor é uma obra que possui três categorias, ou checks para ficar claro, que são: 

Primeira: a língua é desterritorializada. A séria nos chama constantemente a atenção para a ancestralidade dos Addams, com uma tradição aparentemente latina, de uma origem religiosa não puritana e bruxona e com suas referências culturais góticas; enquanto nos Estados Unidos, sua língua não pode ser outra que não o inglês, ao mesmo tempo, sua herança, sua formação e seu contexto a colocam num lugar que narra a história numa dinâmica própria, baseada nas relações construídas pela juventude em suas dinâmicas, opondo o tradicionalmente visto como “saudável” e “amoroso” ao “desgosto” dos Addams, enriquecido pelas referências góticas, latino-americanas e pré-colombianas, narradas como um livro de suspense. A história não se limita a formalidade e referências da norma culta. 

Segunda: o contato imediato com a política. Nesse caso, vemos como tudo na obra é político, e, veja bem, não se trata de instituições, apenas, embora o prefeito cumpra esse papel de forma certeira, mas também do conceito de “político” como um todo das relações de poder, as hierarquias que circulam a nossa recém-chegada em uma terra estranha com papeis sociais bem definidos em um status quo. 

Terceira: o valor do coletivo. Mesmo sendo a protagonista, Wandinha não é a única agente da história, ou seja, o poder do movimento da aventura não depende só dela, mas do coletivo do qual ela faz parte. Os jovens de Nunca Mais são parte de um conjunto que, embora difuso, forma uma comunidade de excluídos (Outcasts no original), um grupo que tem como sua maior semelhança, ser diferente de todo o resto, uma excelente analogia para a diversidade dentro da série. 

Com o cumprimento dessas três categorias, a história se debruça nas aventuras da protagonista em um ambiente que reproduz a famosa frase de Paulo Freire: “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”.  A vida dos estudantes, em um primeiro momento, remonta a vida estudantil apresentada como regular nas séries de teve americanas, eles são divididos em grupos, bem segmentados, com dinâmicas de poder entre si. A segregação dos estudantes emula hierarquizada popularidade externa, como a própria série explica como um “excluído em uma escola de excluídos”. 

O universo de Wandinha parte desse exercício de filosófico de uma inversão das dinâmicas sociais com destaque para o papel político e questionador da juventude. A história oficial da cidade de Jericho exalta a figura do colonizador puritano Crackstone, responsável por expulsar os primeiros Outcasts da cidade séculos atrás. Esse líder religioso, quase messiânico, engloba os desejos conservadores e, por vezes, reacionários, da população local que se enxerga como única detentora dos direitos da cidade, excluindo, ainda mais, os excluídos. 

É o objetivo criar essa identificação pela própria linguagem da juventude, seja ela estrangeira ou local, chamando atenção inclusive para o potencial contestador e curiosidade de jovens enxeridos. não à toa, sobram referências à Harry Potter que, apesar das polêmicas envolvendo acusações de transfobia da J.K. Rolling, representa muito bem capacidade revolucionária dos jovens. 

Em ambas as obras vemos adolescentes cheios de agência, capazes de agir por si próprios e tomar decisões relevantes na história, enfrentando o perigo reacionário, o mal antigo que deseja desigualdade e superioridade de um grupo sobre outro, Wandinha e Harry, juntos de seus amigos, servem a função de lutar por maior igualdade em seus respectivos mundos, buscando justiça e um futuro melhor, opostos aos seus respectivos algozes, cujo objetivo é recriar um passado de louvor. São história não sobre simplesmente bem e mal, mas sobre passado e futuro, sobre liberdade, igualdade e dominação. 

A potência narrativa de uma história menor é (com o perdão da ironia) gigantesca, pois se trata de explorar possibilidade tanto na forma como no conteúdo da série e de seus personagens. Uma história política, bem contada, é interessante como um fenômeno social, exaltar esse perfil questionador dos adolescentes, que é muitas vezes repreendido, sendo que é um dos elementos responsáveis pela construção do futuro de nossa sociedade.

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