A Diaba Mora no Detalhe

As musas passaram suas técnicas aos humanos e esses desenvolveram seus próprios modos de contar as histórias, narrando como um eu lírico alcança seus objetivos, suas longas jornadas, dores, medos, sucessos ou celebrações. Nasceu a música. uma forma de arte que lava a alma, nos ajuda a abrir a mente, relaxar, viajar longas distâncias sem sequer sair do lugar.

Foi isso que fez Nando naquele campão, um showzaço que lavou a alma, enquanto a chuva lavava os corpos e a lama sujava os pés. Nando Reis tem, não apenas habilidade, mas um cuidado com a música que toca o coração. O som da ausência da Pitty, que iria, mas não pôde participar, foi sentido e o carinho de Nando com a música ainda mais, todos pudemos sentir esse afago sonoro.

O eu lírico de uma música é capaz de nos revelar toda a história de sua vida, como João de Santo Cristo, ou um único episódio, como Geni quando surgiu o zepelim. Essas histórias podem ser contadas por um observador distante, ou pelo próprio personagem, como o cowboy de Raul Seixas. O importante é fazer com que a história seja contada da melhor forma que pudermos.

Mas é comum que os protagonistas dessas narrativas não sejam respeitados, em especial quando tratamos de músicas em primeira pessoa, que são encarnadas diretamente em quem canta, como “Na Sua Estante” da Pitty. Não saberei dizer muito sobre quando a música foi escrita, foi um exercício de criatividade? Uma catarse sentimental? O fato é que a música é ótima.

Já ouviu algum cantor (masculino) interpretando essa música? Se sim, deve ter reparado que, nos poucos trechos com adjetivos, eles alteram para o seu próprio. Parece um detalhe, mas é lá onde mora o Diabo. O eu lírico escrito pela Pitty é uma mulher lidando com o fim de um relacionamento. A música, sem dúvida, dialoga conosco, homens, e com situações que já passamos também. Ainda assim, por que mudar o gênero da personagem?

Homens aprendem desde cedo, é importante se marcar como homem! Homens usam ponto de exclamação para dar ênfase! Homem só usa oração coordenada! A masculinidade performada pelos homens tem essa característica de negar a feminilidade, não basta “não ser mulher”, é preciso ser homem! Portanto, se a música é em primeira pessoa, não será permitido qualquer detalhe no feminino, afinal esse medo da face fêmea é natural.

Essa música é longe de ser uma obra feminista, o videoclipe tem como estrela o Homem de Lata, ela claramente que que todos se identifiquem. A questão aqui é justamente esse Diabo, essa necessidade de se negar o menor detalhe feminino, de trocar a identidade e a divindade que está na letra. Foi aqui que Nando brilhou.

O cantor (masculino), na ausência de sua companheira (feminina), tinha como escolher se ia ou não trocar o gênero do adjetivo. O o macho e a fêmea, ser ou não ser, eis a questão.

A decisão? Ser.

Ao meu lado, a voz do Nando competia (e felizmente ganhava) com a de um rapaz que cantava junto. Me chamou a atenção o fato de ele usar o masculino, ainda que o artista, no palco e com o microfone, usasse o feminino. A necessidade de afirmação da masculinidade supera até mesmo o evento do show. Nando Reis optou pelo carinho com a canção e, dessa forma, foi ainda mais carinhoso conosco.

Talvez não seja tão importante reforçar a minha própria identidade? Mais alguém pensou nisso enquanto ouvia as músicas do show? A louca e vermelha Diaba, que reside nas pequenas partes das canções, deu um enorme salto, apareceu, brincou e bagunçou. Quando acabou, foi embora com o Nando enquanto todos saímos do descampado tentando não escorregar na lama.

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